E se o feminismo não for o bicho papão?
- des-iguais
- 5 de jun. de 2020
- 4 min de leitura

Acautelando a não existência de uma história única de emancipação feminina, sublinho que esta é uma breve reflexão sobre o feminismo enquadrado numa narrativa ocidental pela voz de uma mulher branca europeia. Posto isto, a verdade é que ao longo dos tempos há uma presença constante de mulheres que insurgiram contra a sua condição, lutando por uma liberdade que, não raras vezes, lhes custou a vida.
Estranhamente (ou não, como iremos debater adiante), frequentemente as feministas foram e são interrogadas sobre o motivo pelo qual, se afinal almejam uma igualdade efetiva entre mulheres e homens, continuam a intitular o nome do movimento como “feminismo” e não o alteram para algo mais “neutro”. Ora, relativamente a isto, eu gostaria de aproveitar este espaço para passar a esclarecer duas questões que me parecem basilares. A primeira, prende-se com o facto do feminismo não ser o equivalente ao machismo. Este movimento nasceu em resposta a uma supremacia masculina milenar, imposta dentro de um sistema patriarcal, que valida e suporta a superioridade masculina, baseando-se em crenças e comportamentos machistas. O feminismo não tem assim, de todo, como objetivo prestar uma resposta direta, isto é, fazer subversão de uma supremacia masculina, para uma supremacia feminina. Em segundo lugar, gostaria de usar o caso da morte de Emily Davison (1913), que durante a primeira vaga do feminismo (últimas décadas do sec. XIX) se atirou para a frente do cavalo do Rei numa famosa corrida de cavalos no Reino Unido, como forma de protesto pelo direito ao voto vedado às mulheres. Deste episódio, resultou a morte de Emily mas também um impacto social que viria a contribuir inegavelmente para a conquista do direito ao voto, em 1918, para as mulheres do país em questão. Com o caso relatado pretendo assim demonstrar que todas as conquistas de Direitos Humanos e, mais concretamente dos Direitos Humanos da Mulheres, tem por detrás das múltiplas histórias de luta, rostos e que, a meu ver, negar o nome do movimento seria desonrar todas estas conquistas e, mais que isso, todas as pessoas que se sacrificaram em prol delas.
Ainda assim, convido-os/as a ir mais a fundo na questão e refletirmos, efetivamente, no verdadeiro motivo pela questão, afinal, o termo “feminismo” é tão incomodativo socialmente. Pessoalmente, sinto inúmeras vezes que existe uma larga franja social, embebida deste mesmo patriarcado e que tenta uma espécie de moeda de troca entre a alteração do termo e algumas “migalhas” de igualdade - quase como se de uma situação de justiça social não se tratasse. E, em boa verdade, quem assim pensa, nunca poderá lidar verdadeiramente com a naturalidade que a igualdade entre homens e mulheres deve ter no Mundo. Apagar o termo feminismo seria apagar a memória histórica, todas as vivências e todas as histórias de vida de mulheres que, só por esta sua condição à nascença, viram o seu destino imediatamente delimitado. Retirar o termo feminismo da equação é retroceder no caminho que se trilha em torno do reconhecimento de que as mulheres são desproporcionalmente mais vítimas, se encontram mais expostas a situações de risco e, portanto, são mais vulneráveis socialmente do que os homens. Os factos são inequívocos relativamente à posição de que somente assumindo esta realidade, estatisticamente comprovada, poderemos debater a categoria género com as efetivas preocupações e consciência dos impactos para mulheres e homens.
É fundamental manter a mulher como protagonista deste movimento e manter o feminismo às claras, na honestidade intelectual com que foi pensado e com que deve ser exercido porque, a linguagem é um sinal de memória, luta e resistência. Com isto, enquanto ser humano que sou, sentir-me-ia em profundo desrespeito se suportasse a alteração do nome de um movimento, que tanto me deu enquanto mulher e que tanto nos deu e dá enquanto pessoas detentoras de Direitos Humanos, pelo simples facto de a sua semântica, ligada ao feminino, causar desconforto social a quem, afinal, não quer um mundo justo. Deixemo-nos de miudezas, falamos aqui de algo maior, algo mais importante do que isso, falamos da memória histórica - aquela que nos permite saber de onde vimos e nos ajuda a ter presente os erros que não queremos voltar a cometer enquanto sociedade.
E com isto, gostaria de finalizar com uma ideia que me parece muito relevante para levarmos esta luta adiante. As mulheres continuam sim, a assumir com maior preponderância o papel de cuidadoras da casa, dos filhos, dos doentes e dos idosos, fruto de uma construção social numa sociedade patriarcal que delegou a estas os serviços domésticos e de cuidado e que, em bom rigor, não é mais do que um papel social facilmente desmembrável, se pensarmos que existem outras organizações sociais (menos representativas) pelo mundo, nomeadamente organizações tribais, e com configurações totalmente invertidas às que nos são próximas – sim, a forma como a sociedade ocidental no seu geral está organizada pode e deve ser (re)pensada. E, por outro lado, lembremo-nos também que a mesma defesa pela moral e bons costumes que sobrecarrega mulheres em múltiplas jornadas de trabalho, também é a mesma força que empurra os homens para o cumprimento de espectativas tradicionais de masculinidades tóxicas pela privação de sentir : a dor de quem se apaixona e sofre, a dor de quem gostaria de ser mais próximo das suas crianças mas não sabe como fazê-lo ou é desacreditado ao nível das suas competência e responsabilidades para tal tarefa, a dor de quem perante a tristeza “não pode chorar”, são também alguns exemplos de que também os homens são privados da sua liberdade e, portanto se devem juntar-se ao movimento feminista.
Para dizer verdade, não sei localizar em que lugar no tempo os seres humanos se perderam desta condição de dependência para caminhar e decidiram se separar mas, na realidade, não é hora de nos questionarmos sobre esse momento, é sim altura de nos unirmos com o objetivo de deitar por terra toda a sinalética social que nos mostra indicações sobre “funções masculinas vs femininas” e compreendermos que quem está a suportar toda esta “imposição cultural” somos todos/as no nosso dia-a-dia, com pequenas ações que podemos ir alterando, evitando e melhorando. É exatamente por isso que, mais do que impor que nos assumamos todas/os como feministas sem pudores, entendo que este será um processo capaz de decorrer naturalmente da consciencialização esclarecida de que é urgente desfazer a fragmentação existente dentro das questões de géneros e envolver os homens neste caminho onde, não sendo eles os protagonistas, são parte essencial para que vivamos em justiça. Afinal, o que seria da liberdade se ela mesma fosse baseada em inclusão?
Joana Torres
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