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Não nascemos feministas, tornamo-nos. Porque apenas se nasce de uma forma: a humana!

  • Foto do escritor: des-iguais
    des-iguais
  • 18 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura




“On ne naît pas femme, on le devient.” – “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”[1]. A célebre afirmação com que Simone de Beauvoir, filósofa francesa do séc. XX, inicia o volume dois daquele que é considerado o maior ensaio filosófico contemporâneo sobre feminismo - O Segundo Sexo, publicado em 1949, é uma evidência, no entanto, é ainda algumas vezes incompreendida. Na obra, que marca uma etapa fundamental no pensamento feminista ocidental e que acabaria por se tornar numa espécie de manifesto feminista, a autora defendia, há cerca de 70 anos, em traços gerais a tese segundo a qual a mulher é identificada socialmente como figura do “Outro”, como figura alienada pela cultura masculina dominante, como sinónimo de inferioridade em relação ao masculino que se apresenta como a norma humana na sociedade patriarcal, sendo tratada como um “segundo sexo”. Nesta medida, a sua conhecida frase acabaria por sintetizar a ideia central que daí decorre, a de que não existe propriamente uma natureza feminina definida, a de que nenhum comportamento é “naturalmente” feminino ou masculino e, consequentemente, de que tanto a feminidade como a virilidade são construções sociais. Fabrica-se a feminilidade, assim como se fabrica a masculinidade.

Ora, a “diferença” entendida como uma marca de inferioridade e a desigualdade de género que daí advém são circunstâncias cultural e socialmente construídas, e não situações naturais. São, essencialmente, a sociedade e a cultura que impregnam as nossas representações e que moldam os nossos comportamentos. Mas “tornar-se” (verbo devenir em francês) é sinónimo de “devir”, vocábulo que por sua vez assume o sentido de “se afirmar”. E nesta perspetiva de afirmação e ao mesmo tempo de transformação, o verbo encerra em si algo que não se aplica apenas à condição da mulher. Diz respeito também ao homem e a todos os géneros que possam existir entre os dois. Porque sejamos aquilo que formos, há sempre um conjunto de normas sociais, de tradições, de modelos e de expectativas que insistem em ditar-nos a existência e em relação aos quais temos de nos afirmar e transformar. Que tais “padrões” existam não me incomoda, mas que me sejam impostos, isso é algo que não devo, não posso e não quero aceitar. O que urge aceitar, isso sim, é a “diferença” como uma fonte positiva, geradora de valores alternativos. A igualdade não deve, aliás, pressupor a rejeição da diferença. Como declarou a política e ativista feminista, também ela francesa, Simone Veil: “a minha reivindicação enquanto mulher é que a minha diferença seja tida em conta, que eu não seja forçada a adaptar-me ao modelo masculino” [2].

O que importa, portanto, é sermos nós próprios, é podermos ser mais idênticos dentro das nossas diferenças. Mas se, através da nossa própria existência, todos nos tornamos, todos nos afirmamos de uma forma ou de outra, é preciso que exista nesse “tornar-se” uma condição essencial: a da possibilidade de escolha. Já que viver é ser livre, “que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite; que os nossos laços com o mundo sejam criados por nós; que a liberdade seja nossa própria substância”[3], como afirmou também Beauvoir.

Lamentavelmente, sabemos que esta liberdade de escolha, mesmo em sociedades ocidentais democráticas, não passa muitas vezes de um ideal e que ela não é ainda a regra ou princípio norteador da vivência de cada um e de todos. Verificamos que, nas mais diversas esferas da dimensão humana, ainda imperam vozes e atitudes de quem insiste em impor e manter a sua própria visão de género. E constatamos, afinal, que esta realidade infeliz é, em boa parte, fruto da ignorância – a tal “mãe de todos os males”[4] como advertiu o humanista François Rabelais, que ainda grassa um pouco por todo o lado e que é manifesta nesta matéria, comprometendo a nossa própria capacidade de “devir” e de afirmação. É, pois, contra isto que é preciso agir.

Ser feminista, hoje, e agir como tal é acima de tudo pelejar com armas simbólicas como a disseminação do saber e do conhecimento e a promoção do debate e da discussão livre de ideias. Só a aposta numa maior consciencialização permitirá que a verdadeira liberdade de ser se possa tornar realidade, e que tal facto se traduza numa mudança efetiva de comportamentos, em prol da construção de uma sociedade mais justa, mais aberta e menos desigual. O feminismo, hoje, não é, por isso, um combate de mulheres, é um combate de sociedade. Tornemo-nos todos feministas, porque, afinal, apenas se nasce de uma forma: a humana. Tudo o resto é um caminho a percorrer. E porque não nascemos feministas, mas tornamo-nos feministas, há apenas uma maneira de nos tornarmos: humanamente, todos juntos!

Márcia Marat Grilo

Docente na ESECS – Instituto Politécnico de Portalegre



[1] Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, 2015, Quetzal Editores, Vol. II, p. 13. [2] Disponível em https://dicocitations.lemonde.fr/citations/citation-70075.php, acedido a 24/04/20. [3] Simone de Beauvoir, La Force de l’âge, 1960, Gallimard, tradução livre de “Rien donc ne nous limitait, rien ne nous définissait, rien ne nous assujettissait; nos liens avec le monde, c'est nous qui les créions; la liberté était notre substance même”, p. 22. [4] Tradução livre de “L’gnorance est mère de tous maux”: célebre citação de François Rabelais, extraída do capítulo VII da obra Cinquiéme livre, 1564.

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