Movimento feminista: críticas e um olhar sobre o futuro
- des-iguais
- 22 de mai. de 2020
- 16 min de leitura

Introdução
No que toca à questão “o que é ser mulher?”, deixo a resposta nas mãos das mulheres. Nunca poderei saber o que é nascer num corpo biologicamente que não o meu, não conheço as angústias diárias, diversificadas e específicas das mulheres, não sei o que é sentir-me mulher, entre outras coisas. E, na verdade, não se trata de uma resposta que possa ser dada facilmente por elas, é um assunto deveras complexo. Nesse sentido, é do meu interesse compreender a mulher de um ponto de vista sociológico e até político, isto é, como é que se insere na sociedade e como a sociedade definiu o seu papel. Isto leva-me a olhar para movimentos como o Metoo ou o Feminismo para os 99% e, naturalmente, tecer considerações e críticas, tentando dar um contributo à discussão.
Metoo, um movimento destinado a ser capturado pelas elites
O movimento do início do nosso século (2006) tem, na sua génese, semelhanças com outros movimentos de mulheres – por exemplo, o das mulheres negras do fim do século XIX, com o objectivo principal de conquistar o direito ao voto; ou o das que, em determinadas décadas do século XX, lutaram para alargar o seu papel na sociedade, bem como enfrentar outras realidades do patriarcado. Nestes, as mulheres sentiam que estavam agrilhoadas a dois estatutos: a de negra e a de mulher.
Ao longo dos anos, o movimento Metoo foi adquirindo uma nova dinâmica social. Enquanto que inicialmente tinha o objectivo de combater e proteger as mulheres negras de violência doméstica e de violação, bem como do assédio no trabalho, e, em certa medida, expor a sua miséria diária, acabou por ser apropriado pela classe alta da sociedade, onde se incluem actrizes e cantoras famosas. As suas propostas iniciais eram claras e isso devia-se à origem do movimento cívico, mais concretamente da fundadora, Tarana Burke: mulher trabalhadora, com uma experiência activista bastante rica num dos bairros (Bronx) mais pobres da cidade de Nova York. O objectivo, para além das questões legais, era criar um espaço seguro, uma comunidade de mulheres que partilhavam as suas experiências, por exemplo, de abusos sexuais e que encontravam uma comunidade que as apoiava emocionalmente. Assim, tratava-se de um grupo de sobreviventes de violência em diversas circunstâncias, que tinham o objectivo de proteger as mulheres da sua comunidade, tendo proposto medidas que reforçavam o apoio à vítima de violência, com o investimento, por exemplo, em “rape kits”, isto é, kits de provas de abuso, onde a vítima coloca tudo o que pode ajudar na investigação (roupas, objectos, cabelos, etc); e também investiram na tentativa de reduzir a burocratização do processo de formalização de uma queixa. Neste sentido, é um movimento orgânico, sem qualquer apoio da academia e sem um manifesto propriamente dito – tratava-se de uma luta em torno de uma realidade concreta. E aqui pode-se encontrar a génese da fragilidade do movimento: quando surge nas redes sociais, perde a sua identidade, e a sua universalização ocorre de forma tão espontânea que acaba por se comercializar (por exemplo, com a produção de roupa com o nome embutido), isto é, o sistema apodera-se dele.
Não é por acaso que, após uma década da sua fundação, a sua criadora critica-o abertamente: “We have moved so far away from the origins of this movement that started a decade ago, that sometimes the #metoo movement that i hear people talk about its unrecognizable to me”. Em 2017, a revista Times escolheu como personalidade do ano o próprio movimento, ou melhor, a sua respectiva hashtag (#metoo), o que, a certa altura, era a mesma coisa; com o passar dos anos, esta plataforma redundou numa mera designação nas redes sociais que abrangia todas as mulheres e, ao mesmo tempo, nenhuma, questão que vou tornar mais clara. Na capa da mesma edição, vêem-se caras como a da actriz Ashley Judd e da cantora Taylor Swift. Este foi um de diversos momentos em que se tornou claro o estado do movimento: um vazio ideológico capturado pelas elites. Assim, passou-se do combate à violência e ao assédio nos bairros mais pobres para a mediatização da violência e do assédio no mundo de Hollywood. E as duas narrativas não podem ocorrer ao mesmo tempo; são, em certa medida, antagónicas em que a segunda ofusca a primeira. Enquanto que uma abordava um sistema que incluía milhões de mulheres em diversos países, a outra abordava uma bolha, cujo bode expiatório foi Harvey Weinstein ou, em certas fases, Kevin Spacey, processados publicamente em meros actos políticos teatrais, sem nenhuma consequência real para a condição feminina.
O desaparecimento da identidade do movimento deu-nos a oportunidade de reflectir na importância do mesmo. Tratou-se de um movimento que, apesar de se encontrar, neste momento, completamente esvaziado de objectivos (e até de mediatização), teve força suficiente para se expandir e ultrapassar o Oceano Atlântico, chegando à Europa, onde, considero terem existido progressos mais interessantes. Graças a ele, muitos estudos feitos pela academia começaram a ser publicados e a circular na comunicação social e acredito que, em alguns casos, tornou as jovens mulheres em sujeitos políticos, isto é, críticas da sociedade em que vivem e, mais concretamente, das suas relações com namorados, colegas ou amigos. Porém, ter colocado a mulher no centro do debate, mesmo que inicialmente tenha sido algo de positivo, alienou a discussão e polarizou as posições, contribuindo para o reforço dos padrões do papel da mulher como um ser submisso e constantemente vitimizado.
Não é por acaso que a própria fundadora do movimento criticou o sistema por, mesmo dentro da bolha que é Hollywood, colocar de lado as actrizes negras que também são vítimas de abusos de poder e que representam um conjunto de mulheres cuja disparidade salarial e de mediatização é ainda mais óbvia. Porém, no fundo, a discussão continuava a centrar-se no mundo dos milionários, numa elite que na sua grande maioria não compreende as dificuldades dos mais pobres e que representam, na sociedade americana, o sonho americano de superação. Curiosamente, ou não, a discussão tornou-se tão vazia de significado que, a certa altura, ouviam-se vozes de descontentamento por existir uma disparidade salarial entre géneros no que toca aos actores, em que, por exemplo, o actor mais bem pago ganhou, em 2017, o triplo da actriz bem mais paga; dificilmente o cidadão comum consegue identificar-se com esta discussão de milhões de dólares e do glamour.
Negra e mulher, uma luta a dobrar
É interessante abordar o movimento feminista dentro da comunidade negra nos EUA, porque revela o lado mais sombrio da evolução do movimento até então. A luta não podia ter sido mais difícil e injusta deste lado; as mulheres negras sofreram inúmeras traições, ora pelas mulheres brancas ora pelos homens negros. Apesar de, no século XIX, as sufragistas brancas terem aparentemente aceitado juntar-se às sufragistas negras numa luta universal pelo direito fundamental ao voto, bem como a conquistas no que toca ao trabalho ou à saúde, rapidamente demonstraram as suas verdadeiras intenções e criou-se um fractura interna, o que resultou em dois grupos com base racial. E não se tratava de uma mera questão de melanina; os movimentos tinham objectivos diferentes e baseavam-se em valores diferentes. Assim, por uma questão de pragmatismo de conquistar mais facilmente os seus objectivos e da sua aceitação por parte do homem branco, ou por uma questão de um racismo enraizado, foi-se tornando cada vez mais claro as diferenças nos movimentos, como bem explicou a activista e ensaísta Bell Hooks em Não serei eu mulher? (1981), “As organizações de mulheres brancas podiam limitar as suas atenções a questões como educação, solidariedade social ou sociedades literárias, mas as negras tinham de se preocupar com questões como pobreza, cuidados de idosos e pessoas com deficiências motoras, ou prostituição”; assim, as “organizações de mulheres negras tinham uma natureza potencialmente mais feminista e radical que os clubes de mulheres brancas, dadas as diferentes circunstâncias criadas pela opressão racista”.
A fragilidade (ou falsidade) nas intenções das sufragistas brancas tornaram-se ainda mais claras após ganharem o direito a votar. Tendo as mulheres negras perdido a hipótese de conquistar o real direito ao voto que, segundo elas, lhes daria o poder de mudar a sociedade ao votar em alternativas políticas, as mulheres brancas reforçaram o sistema opressor, como analisou Hooks, “Os privilégios de voto das mulheres (brancas) não mudaram no fundo o destino das mulheres na sociedade, mas permitiram que as mulheres ajudassem a apoiar e manter a ordem social patriarcal racista branca vigente. A conquista do direito de voto pelas mulheres foi, de forma muitíssimo profunda, mais uma vitória dos princípios racistas do que um triunfo dos princípios feministas.”
A luta das mulheres negras também foi caracterizada por uma luta contra si mesmas, isto é, uma luta contra o sistema em que elas participavam como ser oprimido, o que revelou tratar-se de uma estrutura mais complexa e caprichosa do que elas pensavam. Se o sistema imperialista capitalista as oprimiu nas colónias que eram alguns estados – ao contrário dos países europeus, os EUA criaram as suas colónias dentro do seu próprio país, em guetos nos bairros pobres ou nos campos dos estados do Sul -, foi o capitalismo moderno que, a certa altura, lhes deu a ilusão de ascensão social. Isto permitiu que o objectivo da luta se perdesse e os sonhos das mulheres negras se tornassem mais modestos, até bastante superficiais, focando-se numa emancipação com base nos padrões que anteriormente tinham sido combatidos, como a escritora Michelle Wallace torna claro em Black Macho and the Myth of the Super-woman (1979), “as negras estavam determinadas a acreditar – mesmo que a intuição lhes dissesse não ser o caso – que estavam finalmente à beira de se libertarem do fantasma da loira omnipotente de lábios carnudos e pernas de porcelana. Já não teriam de admirar outra mulher no pedestal. O pedestal seria delas. Já não teriam de lutar por elas próprias. Alguém lutaria por elas. O cavaleiro de armadura branca avançaria em nome delas. A bela princesa dos contos de fadas seria negra”. Durante um certo período de tempo, a mulher negra conformou-se com o sistema, pois quis fazer parte dele e perdeu a hipótese de se emancipar; aliás, a sua luta seria mais fácil caso se deixasse seduzir por ele.
A emancipação individual em detrimento do colectivo
Actualmente, a discussão sobre a conquista dos direitos das mulheres ainda tende a redundar no corpo e, mais especificamente, na emancipação individual. E não é por acaso que a tónica continua nesta questão muito específica e que pouco tem que ver, na realidade, com uma conquista de direitos colectivos da mulher. O glamour dos anos 90 do século passado e inícios deste século centrou-se especialmente em figuras, no caso da música, como Madonna ou Beyoncé. Elas representavam a mulher forte, cheia de vitalidade, com um corpo magnífico, cada uma “dona do seu corpo”. O mesmo aconteceu, de forma bastante interessante, em 2014, numa edição da revista Paper, em que na capa podemos observar a multimilionária Kim Kardashian, que expõe o seu corpo de forma bastante impressionante. Na fotografia, vemos uma mulher a controlar o seu corpo a um nível digno de uma deusa: segura um copo de champagne com a parte de cima do rabo. A internet, posteriormente, “explodiu" em comentários. Porém, dos inúmeros comentários feitos, “que mulher poderosa, que curvas surreais”, não se ouviu uma análise mais profunda. De que forma é que uma estrela da televisão - cuja ascensão se baseou num programa de televisão envolto em dramas familiares, no sucesso do seu marido e em inúmeras cirurgias plásticas, que lhe permitiram a façanha que referi anteriormente - pode contribuir para o movimento feminista?
Não é por acaso que uma certa emancipação individual, que redunda na mercantilização do corpo, passa pelas redes sociais. Inúmeras mulheres investem em fotos de corpo altamente arqueado, com o objectivo de ganhar mais seguidores e patrocínios de marcas. Sendo as redes sociais acessíveis a cada vez mais pessoas, ultrapassando barreiras socioeconómicas até um certo ponto, existe uma falsa sensação de liberdade: cada mulher publica o que quer, expõe o seu corpo sem o perigo, por exemplo, de ser violada ou assediada verbalmente; do seu ponto de vista, trata-se de um safe space, distante de assobios e piadas obscenas desconfortáveis ou até traumatizantes. Ainda assim, vai-se apercebendo que não é o caso: as suas fotos circulam em grupos de whatsapp e continua a receber comentários digitais que têm a sua carga negativa, pois pode lê-los vezes sem conta. Então, torna-se interessante observar a frustração desta perda de controlo no que toca à dinâmica de emancipação individual cheia de sedução; apercebem-se, assim, que de uma certa perspectiva, as redes sociais são ainda mais selvagens do que o mundo lá fora – não há regras, não há bom senso. Assim, estamos a educar, como comunidade, jovens mulheres a investir na sua identidade através da constante exploração pública do seu corpo, retirando qualquer significância dos actos, isto é, retirando a sensualidade do corpo. A emancipação da mulher não passa pela abolição da sensualidade ou dos jogos de sedução, mas pode passar pela abolição do papel de submissão ou de uma sensualidade que redunda numa imagem óbvia e superficial do seu corpo, em que as mulheres lutam incessantemente para obter determinados padrões de beleza; a perda de significância desta linguagem corporal complexa está a ser substituída por uma comunicação cada vez mais simplista e óbvia. Através da globalização, o conceito de corpo perfeito não se diversificou; aliás, tornou-se cada vez mais específico e limitativo, aumentando, assim, a luta por ele – luta esta que tenta ultrapassar determinações genéticas.
O corpo como forma de protesto
Na Europa, um grupo auto-proclamado feminista, Femen, apresenta-se publicamente com mulheres de peito à mostra: interrompem o debate sobre o Brexit, no parlamento britânico, ou são entrevistadas na rádio. O que me despertou mais interesse na forma como o protesto costuma decorrer incide na forma constante como a discussão se centra sobre o corpo da mulher e, precisamente isso (ou, pelo menos, a forma como é explorado politicamente), demonstra perfeitamente as fragilidades do movimento. Ao mostrarem as mamas de forma aparentemente simbólica, tapam o rabo e a vagina, o que também acarreta um simbolismo, provavelmente sem se aperceberem. Revelam que nem elas, que reivindicam a liberdade total do seu próprio corpo através da sua exposição, têm coragem de ir contra todos os preconceitos e um certo puritanismo em relação ao corpo feminino – reforçam até a ideia de que a vagina é mais do que uma vagina (não é por acaso que, por exemplo, o mamilo feminino é censurado nas redes sociais). Na aparente radicalidade das suas posições e manifestações, em que afirmam terem controlo sobre o seu corpo, demonstram que não conseguem chocar mais do que lhes é permitido, isto é, o seu radicalismo redonda no mamilo, sendo a imagem da vagina ainda um tabu. Para além disso, o problema em utilizar o choque como arma política deve-se ao facto de a reacção por parte da comunidade ir diminuindo com o passar do tempo, o que obriga o activista a ser cada vez mais imaginativo, isto é, encontrar novas formas de causar desconforto e chamar a atenção. Neste sentido, o activista acaba por se deparar com os seus próprios limites morais, com as suas fragilidades, o que pode facilmente levar o grupo a ser acusado de hipocrisia.
Se em manifestações do Maio de 68 viram-se mulheres a queimar soutiens, em nada existe uma contradição caso levassem na mala um segundo par para utilizarem na viagem para casa. O mesmo aconteceu em manifestações no Chile contra a violação e o assassinato de mulheres. Vale a pena analisar estas últimas manifestações. Ao som de uma batida electrónica, inúmeras mulheres foram para a rua com roupas chamativas e de olhos vendados cantar o seguinte refrão, “É femicídio, impunidade para o meu assassino. É o desaparecimento. É a violação. E a culpa não era minha, nem de onde estava, nem do que vestia. O violador és tu”, sendo o “tu” referendo ao estado, isto é, a todos nós, a comunidade. Tudo nesta manifestação é político e simbólico, isto é, existe uma significância para além do significado óbvio. Elas lutam contra o argumento de que elas constituem um bocado de carne ambulante e que, resumidamente, “estavam a pedi-las” - contradição óbvia quando é proferido por homens, pois expõe um descontrolo animalesco por parte deles, como o filósofo Slavoj Žižek explora com mestria em Violência (2009). Elas vão para além do discurso de vitimização – exigem uma mudança. E nessa manifestação existe um equilíbrio inteligente: a roupa provoca, a música denuncia; as vendas tapam-lhes os olhos, mas, ainda assim, conseguem apontar o dedo ao culpado: o sistema. É este tipo de luta e de performance que o movimento feminista precisa urgentemente.
A emancipação individual é um sintoma do sistema
Ao mesmo tempo que o movimento feminista, ao longo das décadas, conseguiu, ainda que com dificuldades e alguma superficialidade, manter um discurso crítico do sistema predominante, não compreendeu que é exactamente esse mesmo sistema que permite, e até incentiva, em determinados sectores, a mulher a iniciar a sedução. E ao não conseguir analisar de forma profunda e consistente o sistema (isto é, não compreender a complexidade dos jogos de poder), aliou-se a situações como o de Monica Lewinsky. O caso em questão acabou por se tornar mundialmente famoso por levar ao impeachment do ex-presidente Bill Clinton. Porém, o que o torna tão interessante não é o resultado político óbvio já referido. Apesar de Lewinsky, que na altura era estagiária na Casa Branca, ter admitido que iniciou o contacto sexual com Clinton, justificou-se com o facto de ele ser um homem mais velho e experiente, isto é, deveria ter tido “mais consciência do que se passava”. Assim, ela colocou-se no papel de vítima inexperiente que foi enganada pelo sistema. E, apesar de isto ser bastante provável, ou seja, que ela dificilmente tinha consciência de que a situação poderia levar a um escândalo político, o movimento feminista nunca deveria ter abraçado este acontecimento, ao ponto de se tornar numa das suas bandeiras principais, na altura. De que forma esta situação está ao mesmo nível de uma vítima de assédio com um trabalho precário, em que as forças de poder são ainda mais desiguais?
Para clarificar melhor a minha posição, invoco o filme The Assistant (2020). Esta obra retrata de forma pertinente a realidade de uma jovem mulher de classe média que se vê diante de um sistema onde existem poucas formas de vingar no “mundo dos homens”. Uma dessas formas são as ofertas sexuais, em que jovens modelos utilizam o seu corpo, de forma a ganhar um papel num filme. Existem dois momentos que revelam de forma crua a realidade destes meios, quer seja em empresas de marketing, de consultoria ou do mundo do cinema. No primeiro, ela justifica a sua permanência na empresa devido aos seus objectivos profissionais, isto é, de subir na carreira e, assim, ser produtora. No segundo, que encerra o filme, a estagiária vê de fora do prédio o seu chefe a fazer sexo com uma modelo/actriz; depois, volta para casa, demonstrando que estava conformada com o sistema. A emancipação individual é um sintoma do sistema e o movimento feminista deve
olhar para isso com extremo cuidado.
A ânsia de categorizar
Cada vez mais existe um discurso predominante que assenta numa forma de olhar para o mundo que nos rodeia, inclusive nós mesmos, caracterizada por ser classificadora e tecnocrática – sociedade distópica, que foi retratada no brilhante filme Brazil, de Terry Gilliam, em que a burocracia define todos os nossos pensamentos e acções. Porém, apesar do aprofundamento deste pensamento, através de um falso sentimento de união que as redes sociais nos trouxeram, é possível observá-lo em discursos de feministas radicais nos anos 60 e 70, através de uma narrativa pseudo-científica, que enfatizava a superioridade da mulher, ora por ter uma “ligação” à natureza, devido à gravidez, ora por, ao contrário do homem, não basear as suas acções em impulsos selvagens e bárbaros. Felizmente, surgiram críticas relevantes no seio do movimento feminista. Estas feministas afirmaram que o perigo na categorização e na constante procura de uma identidade ou de um sexo superior como discurso político encontrava-se precisamente na facilidade com que se podia justificar inúmeras atrocidades, como aconteceu durante um longo período de escravatura nos EUA ou durante a II Guerra Mundial. Como afirmou Andrea Dworkin, citada em Love and Politics, Radical Feminist and Lesbian Theories, “…I know that many Germans who followed Hitler also cared about being good, but found it easier to be good by biological definition thant by act”, tendo clarificado da seguinte forma, “It was this very ideology of biological determinism that has licensed the slaughter and/or enslavement of virtually any group one could name, including women by men…”. É de notar que um dos problemas da comunidade LGBTI foi ter construído, ao longo dos anos, um conjunto infindável de categorias com a sua linguagem muito própria de difícil compreensão para o cidadão comum e que, actualmente, tentam impor à sociedade.
Uma parte do discurso político com base no determinismo também resulta no policiamento do vocabulário, isto é, numa compulsiva tentativa de avaliar as palavras e de lhes dar um significado fixo e literal, em que, após uma avaliação matemática, a partir de um algoritmo, se pode identificar os racistas, os homofóbicos, os conservadores, entre outras categorias. Aliás, vão mais longe. Afirmam que as próprias palavras constituem em si mesma o racismo ou o machismo que tentam abolir. E, neste estado mais puro de ideologia, observamos diferentes agentes a debicar para seu proveito. Ao mesmo tempo que políticos e activistas de esquerda lutam pelo extermínio de certas palavras ou frases (por exemplo, “não tens tomates?”), observamos partidos ambientalistas a quererem eliminar provérbios populares (dando até exemplos possíveis de outras expressões para substituir, como “Matar dois coelhos de uma cajadada só” para "Pregar dois pregos de uma martelada só"); inclusive, organizações como as Nações Unidas incentivam um discurso neutro, que é mais facilmente aplicável na língua inglesa (por exemplo, mankind para humankind). O movimento feminista deve reavaliar o seu discurso e os seus objectivos e, acima de tudo, compreender que dificilmente a censura pode constituir uma bandeira para a conquista de uma sociedade igualitária.
Feminismo para os 99%, uma nova proposta
Seria injusto afirmar que, no tempo presente, não têm surgido inúmeras críticas aos movimentos feministas mais mediatizados, como aqueles que abordei anteriormente. Uma dessas críticas é feita através de um manifesto, ou seja, uma contra-proposta: Feminismo para os 99%.
O mais interessante nesta proposta é que desmistifica com sucesso e de forma clara os problemas dos movimentos feministas actuais, especialmente os mais liberais endorsados por mulheres que têm assentos de topo em empresas como a Facebook (por exemplo, a COO da Facebook, Sheryl Sandberg). Segundo o pensamento das últimas, o feminismo e a carreira profissional no mundo empresarial podem-se conjugar numa simbiose perfeita. Neste sentido, propõem soluções do tipo coaching como o leaning in, isto é, a mulher deve chegar-se à frente, ter uma postura diferente, ser imponente na sala de reuniões, isto é, mostrar que também sabe mandar. Existem dois grandes problemas nesta lógica, que o manifesto analisa de forma incisiva. Em primeiro lugar, fala exclusivamente para um público de classe média/alta que tem o objectivo de ter uma carreira profissional no privado muito específica (uma mulher que trabalhe num hotel a limpar quartos ou numa empresa de calçado como costureira não se identifica com esta mensagem). Por último, este pensamento é conivente com um sistema hierarquizado e muitas vezes machista, ao afirmar que as mulheres devem ser como os homens, ou seja, os homens são naturalmente superiores, pois não precisam de um livro para os incentivar a falarem alto e serem confiantes.
Para os defeitos crassos brevemente analisados anteriormente, o movimento dos 99% compreende os jogos de poder e a força do capital. Neste sentido, tem uma visão clara sobre o que deve ser o futuro do movimento feminista. Ele deve unir-se às lutas sindicais, afirmando, desta forma, que a mulher é uma trabalhadora e, nesse sentido, deve exigir os seus direitos como tal; não excluiu os homens desta luta, pois compreende que a precaridade não é só uma realidade das mulheres, mesmo que, actualmente, tenha as suas particularidades; transmite uma mensagem para a maioria da população, isto é, uma mensagem para 99% da população. Também define de forma lúcida o inimigo político: o capitalismo, mais especificamente o neo-liberalismo. É ele que cria um sistema em que seja possível que o homem mais rico do mundo seja dono de uma empresa como a Amazon, onde os trabalhadores são forçados a trabalhar inúmeras horas, sem condições laborais e a ganhar um ordenado miserável, como o manifesto descreve “(homens e mulheres) são obrigados a vender a sua força de trabalho em retalhos – e a baixo custo – de forma a conseguir sobreviver”. Neste sentido, não há diferença que a chefia seja constituída por homens ou mulheres, “Não há (…) nada de feminista em mulheres da classe dominante que fazem o trabalho sujo de bombardear outros países ou que apoiam regimes de apartheid; (…) que expropriam populações indefesas, através de ajustes estruturais, dívida instituída e austeridade forçada”. É precisamente este sistema que, em tempos de crise, agrava os cortes “de serviços públicos – como o financiamento de abrigos para vítimas de violência doméstica…”. Assim, o movimento em questão exige das mulheres união para combater um inimigo político que não se cinge a meros indivíduos, descartando aquelas que querem ser complacentes com o sistema.
Reflexão final
A crítica ao movimento feminista tem de vir precisamente daqueles que lutam pelos direitos sociais. E dessa crítica pode surgir um movimento feminista mais consistente, que não caia no reaccionarismo e na pura mediatização. Há quem diga que o feminismo já conquistou tudo o que precisava; porém, eu diria que, em muitos aspectos, pouco ou nada se alterou. Continuam a existir trabalhos para mulheres e para homens, aos quais muitos justificam com argumentos biológicos, “as mulheres gostavam mais de crianças, devido ao seu lado maternal”. E é precisamente por ainda este tipo de argumentos serem mais ou menos consensuais em sociedades como a portuguesa que o feminismo precisa de dar um papel ao homem nesta luta, da mesma forma que o papel dos brancos foi essencial na luta pelos direitos cívicos dos negros nos EUA. Acredito que ainda seja possível desenhar um movimento verdadeiramente universalista, que proteja os mais pobres e que construa uma mulher política e reivindicativa.
João Pinho
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